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terça-feira, novembro 8

Memórias Em Natal - Ala Judaica


Ala Judaica do Cemitério mais aintigo da Cidade do Natal, capital do Rio Grande do Norte.

A caracterização do cemitério como um espaço ecumênico público é uma invenção que no Brasil remonta ao início do século XIX. Até então, costumava-se sepultar os mortos no interior ou nos adros dos templos e conventos, uma prática que, naturalmente, não contemplava pessoas à margem do padrão social declarado branco e católico. 

Muito embora tenha-se verificado ao longo da história brasileira alguns hiatos nos quais se observou a ocorrência de grupos marginais improvisarem seus próprios campos santos, negros, mouros, protestantes e judeus estavam, por força da lei, proibidos de fixarem abertamente espaços públicos para inumar os seus mortos. Com a vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, Dom João VI celebrou com a Inglaterra um tratado de livre navegação que fixava, entre outras coisas, a liberdade para construção de cemitérios de confissão protestante. Aberto o precedente, membros de outros credos imediatamente lançaram mão do expediente de adquirirem espaços próprios nestes cemitérios.


Na então Província do Rio Grande do Norte, o primeiro cemitério britânico foi fixado na cidade do Natal, na margem esquerda do Rio Potengi, próximo à praia da Redinha. Tratava-se de um sítio ermo e idílico, apressadamente elegido pelo poder público como última morada dos estrangeiros não-católicos vitimados por uma epidemia de cólera-morbo que assolou a cidade. A data precisa de sua fundação ainda é desconhecida, todavia é seguramente mais antigo que a primeira necrópole pública da cidade, o Cemitério do Alecrim, inaugurado em abril de 1856.

Segundo Egon e Frieda Wolff, eminentes pesquisadores da historiografia judaico-brasileira, a primeira sepultura israelita erigida na cidade de Natal pertence a Godel Slavni, falecido a 18 de junho de 1914. Naqueles idos, os poucos judeus radicados na cidade ainda não haviam organizado a comunidade israelita natalense, que teria início a partir do núcleo de quatro irmãos da família Palatnik, imigrantes originários da Ucrânia que aqui desembarcaram na segunda década do século XX. 

Dentre as ações efetuadas no sentido de organizar a prática religiosa da coletividade judaica potiguar, imperava a necessidade de um campo santo comunitário. A doação da área, dentro dos limites do Cemitério do Alecrim, foi finalmente acordado com a prefeitura em 10 de janeiro de 1931. Numa quadra murada, passaram então a ser sepultados os membros da comunidade, inclusive aqueles falecidos antes de sua constituição e que posteriormente foram transladados para junto dos seus.

Ainda que constituída de um conjunto de lápides de estilo sóbrio com inscrições em Hebraico e a Estrela de Davi, o fascínio que a ala judaica exerce sobre os natalenses rivaliza com a admiração pelos suntuosos jazigos que afloram em outras quadras do cemitério. Exemplo disso é o poema "Canção de amor para uma moça judia", da poetisa potiguar Iracema Macedo:


“Conheço Rosinha Palatnik por um único retrato de louça que vive no cemitério entre os túmulos judeus. 
Morreu em 1936 aos vinte anos de idade e há sobre a lápide letras em hebraico que não decifro. 
Talvez suicídio, talvez outra sorte 
De qual morte morreu essa moça judia que não morre? (...)


Com a migração dos judeus potiguares para outros centros urbanos e o conseqüente encerramento das atividades do Centro Israelita de Natal ― a entidade mantenedora da ala ― no final dos anos 1960, a área entrou num progressivo processo de esquecimento e abandono. Com algumas pedras tumulares completamente enegrecidas e epitáfios apagados pelo tempo, a quadra israelita do Cemitério do Alecrim ainda aguarda uma intervenção que vem sendo há muito adiada pela diretoria da Comunidade Israelita do Rio Grande do Norte (CIRN) e pela seção regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Segundo os funcionários da administração do cemitério, o lugar onde descansa uma parte importante da memória social da cidade quase nunca é visitado. Os raros visitantes parecem surgir atraídos pelos ecos da vida daqueles imigrantes que, no início do Século XX, trouxeram em suas bagagens ares de modernidade para a provinciana Natal. Fundaram lojas, como a Casa Sion, sediada na Rua Dr. Barata, nº 6, onde era possível encontrar desde brinquedos até mosaicos com belas padronagens; realizaram incorporações imobiliárias, a exemplo da vila Palatnik, além de interagirem de forma substancial na vida social da cidade, participando de lojas maçônicas, associações desportivas e comunitárias. 

Repleto de conteúdos simbólicos e de elos da memória dos acontecimentos da cidade, a ala israelita do Cemitério do Alecrim é mais um dos tantos documentos arquitetônicos que se volatizam pela ação combinada do tempo e da indiferença. Há que se lembrar que a responsabilidade pela preservação deste capítulo da nossa história não é atribuição exclusiva do Estado, devendo ― até como um exercício de educação patrimonial ― ser compartilhada também com entidades civis e pessoas físicas. 

Enquanto isso, oculta na paisagem urbana e fora da ordem de prioridades, a ala israelita do Cemitério do Alecrim segue suspensa apenas pela lembrança de uma outra época, pacientemente à espera de qualquer ação que a dignifique nesta terra prometida do esquecimento.

Por Renato Carlos de Menezes - Historiador
Foto - Igor Santos

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